Alterações climáticas

Os mercados são os causadores<br>dos problemas ambientais,<br>as suas leis não os conseguirão resolver

Vladimiro Vale

«Ao ritmo ac­tual de emis­sões de Gases de Efeito de Es­tufa, dentro de cerca de 25 anos será ul­tra­pas­sado o li­mite de mil mi­lhões de to­ne­ladas de car­bono li­ber­tado cu­mu­la­ti­va­mente para a at­mos­fera, o que pro­du­zirá um au­mento da tem­pe­ra­tura global de 2ºC. Uma vez atin­gido este au­mento, temem-se re­ac­ções ir­re­ver­sí­veis nos sis­temas cli­má­ticos e que a hu­ma­ni­dade não po­derá voltar às con­di­ções em que a ci­vi­li­zação se de­sen­volveu»1.

As ques­tões am­bi­en­tais são usadas pelas grandes po­tên­cias para con­di­ci­onar os países em de­sen­vol­vi­mento

Num quadro em que é aceite que de­veria haver de­fi­nição de ob­jec­tivos de re­dução das emis­sões de gases com efeito de es­tufa mais am­bi­ci­osos, foi anun­ciado um acordo na sequência da Con­fe­rência de Paris no âm­bito da Con­venção Quadro sobre Al­te­ra­ções Cli­má­ticas das Na­ções Unidas. No en­tanto, o Co­mité Cen­tral do PCP su­bli­nhou que, «de­sig­na­da­mente em re­lação aos ob­jec­tivos mais am­bi­ci­osos de re­dução das emis­sões de gases com efeito de es­tufa, os mesmos não en­con­tram res­posta no texto apro­vado». De facto, pa­rece ter ocor­rido um salto em frente para es­conder a falta de com­pro­missos con­cretos. Daí o es­ta­be­le­ci­mento de ob­jec­tivos mais am­bi­ci­osos para li­mitar o au­mento de tem­pe­ra­tura a 1,5ºC, em vez dos 2ºC ini­ci­al­mente in­di­cados, não ha­vendo no en­tanto es­cla­re­ci­mento sobre a forma de como vão ser atin­gidos os ob­jec­tivos, uma vez que as me­didas já anun­ci­adas por 185 países, dos 195 que apro­varam o texto, são in­su­fi­ci­entes para cum­prir o ob­jec­tivo anun­ciado, co­lo­cando o aque­ci­mento acima dos 3ºC.

Tal como em todo o pro­cesso de pre­pa­ração, também nas con­clu­sões desta ci­meira existe uma imensa cam­panha de pro­pa­ganda ide­o­ló­gica, com que os cen­tros de de­cisão do ca­pital pre­tendem le­gi­timar me­ca­nismos de acu­mu­lação ca­pi­ta­lista, a pro­pó­sito da ne­ces­si­dade de com­bate às al­te­ra­ções cli­má­ticas, como o Mer­cado de Car­bono, en­quanto me­ca­nismos que visam mer­can­ti­lizar e fi­nan­cei­rizar o am­bi­ente com o pre­texto de so­lu­ci­onar pro­blemas reais.

1. Le­gi­timar me­ca­nismos de mer­cado
que mer­can­ti­lizam o am­bi­ente

Num ar­tigo que o Se­cre­tário-geral das Na­ções Unidas, Ban Ki-Moon, fez pu­blicar na sequência do Acordo de Paris, lê-se o se­guinte: «Os mer­cados têm agora o sinal claro de que ne­ces­si­tavam para au­men­tarem os in­ves­ti­mentos que vão gerar de­sen­vol­vi­mento com baixas emis­sões de gases e mais re­si­li­ente ao clima.» Ch­ris­tine La­garde, di­rec­tora do FMI, pu­blicou também um ar­tigo nos dias que an­te­ce­deram a con­fe­rência, onde es­creveu: «se os países que mais emitem Gases com Efeito de Es­tufa (GEE) im­pu­sessem um preço da to­ne­lada de CO2 de 30 dó­lares, po­diam gerar re­ceitas fis­cais de cerca 1 por cento do seu PIB.» O Pú­blico, na sua edição de 13 de De­zembro, de­cre­tava num sub­tí­tulo de um ar­tigo in­ti­tu­lado «Os pontos es­sen­ciais do novo tra­tado cli­má­tico apro­vado na Ci­meira de Paris» que «Ins­tru­mentos de mer­cado vão ajudar a cum­prir pro­messas».

O que é um facto é que o Mer­cado de Car­bono não fun­ciona e tem tido um efeito per­verso. Num quadro de crise e de re­dução da ac­ti­vi­dade eco­nó­mica, os pro­du­tores de GEE di­mi­nuíram a pro­cura de li­cenças de pro­dução de CO2. Com a di­mi­nuição da pro­cura baixou o preço das li­cenças, o que tornou muito ba­rato po­luir. A to­ne­lada de CO2 chegou a atingir os três euros, e mesmo após in­ter­venção da UE, apenas au­mentou para os oito euros, o que faz com que seja ba­rato uti­lizar com­bus­tí­veis mais po­lu­entes.

O ad­mi­nis­trador da EDP Rui Tei­xeira disse numa en­tre­vista ao Ex­presso que «ul­ti­ma­mente a União Eu­ro­peia criou uma forma de re­tirar do mer­cado al­gumas das li­cenças e fazer subir o preço. Ainda assim, há um con­senso de que oito euros por to­ne­lada não é su­fi­ci­ente para jus­ti­ficar que in­dús­trias mais po­lui­doras acabem por fe­char. Isso hoje em dia vê-se na uti­li­zação do carvão para a pro­dução de elec­tri­ci­dade na Eu­ropa em geral, que pre­va­lece sobre a uti­li­zação do gás. Com os preços do CO2 como estão con­tinua a ser mais ba­rato pro­duzir com carvão do que com gás».

Assim se com­prova o que o PCP tem vindo a de­nun­ciar: o Es­quema Eu­ropeu de Tran­sac­ções (ETS), in­tro­du­zido há 10 anos, não con­duziu à de­se­jada re­dução de emis­sões de Gases com Efeito de Es­tufa, bem pelo con­trário. A ex­pe­ri­ência eu­ro­peia de tran­sacção de quotas de car­bono des­mente cla­ra­mente a vir­tu­o­si­dade da re­gu­lação pelo mer­cado e de­monstra a ine­fi­cácia e per­ver­si­dade dos seus ins­tru­mentos, que visam a ob­tenção de lucro, a acu­mu­lação de ri­queza e o apro­fun­da­mento das de­si­gual­dades.

Me­ca­nismos como este, de­cor­rentes do pro­to­colo de Quioto, que mer­can­ti­lizam o am­bi­ente, co­locam a ca­pa­ci­dade da Terra de re­ci­clar car­bono nas mãos das mesmas cor­po­ra­ções que estão a de­la­pidar re­cursos e a de­gradar o am­bi­ente, con­so­li­dando uma po­lí­tica de pri­va­ti­zação da at­mos­fera.

2. Fa­vo­recer pro­cessos de na­tu­reza co­lo­nial
e de con­di­ci­o­na­mento dos países em de­sen­vol­vi­mento

Outro ob­jec­tivo que é es­con­dido por de­trás da pro­pa­ganda é a in­tenção de fa­vo­recer pro­cessos de na­tu­reza co­lo­nial e de fi­nan­ci­a­mento de pro­jectos de grandes grupos trans­na­ci­o­nais em países em de­sen­vol­vi­mento, po­ten­ci­ando a do­mi­nação im­pe­ri­a­lista dos re­cursos destes países. Daí o Co­mité Cen­tral do PCP ter dito que «quando se exigia a as­sunção do prin­cípio da res­pon­sa­bi­li­dade comum mas di­fe­ren­ciada, entre países em de­sen­vol­vi­mento e in­dus­tri­a­li­zados, é pro­posto um sis­tema único, sus­cep­tível de apro­fundar mais in­jus­tiças entre os países que mais con­tri­buem e con­tri­buíram para a acu­mu­lação de car­bono na at­mos­fera e os países em de­sen­vol­vi­mento».

A cri­ação de um sis­tema único de re­gras de «com­bate» às al­te­ra­ções cli­má­ticas para todos os países era um grande ob­jec­tivo da ad­mi­nis­tração dos EUA. Jus­ti­fi­cavam «as re­gras, para serem in­clu­sivas e para serem vá­lidas para um largo es­pectro de países, tem que ser pouco rí­gidas». Não qui­seram dois sis­temas – um para países de­sen­vol­vidos, outro para países em de­sen­vol­vi­mento – pro­postos por vá­rios países, entre os quais Cuba e Brasil.

Os EUA qui­seram assim de­sen­volver uma forma de con­di­ci­onar os países em de­sen­vol­vi­mento com uma fór­mula que é po­ten­ci­a­dora de in­jus­tiças, na me­dida em que os países in­dus­tri­a­li­zados, que mais con­tri­buem e con­tri­buíram para a dita acu­mu­lação de car­bono na at­mos­fera, querem agora pagar a mesma fac­tura que os cha­mados países em de­sen­vol­vi­mento. Tanto mais que não basta com­parar uma pro­dução ins­tan­tânea ou anual de GEE, visto que a po­luição é um fe­nó­meno cu­mu­la­tivo. Ou seja, qui­seram co­meçar a apagar a res­pon­sa­bi­li­dade his­tó­rica dos países in­dus­tri­a­li­zados nas emis­sões de GEE.

Os ins­tru­mentos de mer­cado con­ju­gados com o con­ceito de neu­tra­li­dade de emis­sões contêm riscos graves. Neste quadro, a aposta nos ditos su­mi­douros de CO2 (flo­restas e ou­tros mé­todos) tem tudo para se tornar um grande me­ca­nismo de não re­solver o pro­blema e até de o apro­fundar. Um exemplo que até já acon­tece hoje em dia e que pode vir a ser mais ge­ne­ra­li­zado é o de uma grande em­presa emis­sora de CO2 que, para ga­nhar cré­ditos de emissão, in­veste na cri­ação de uma mo­no­pro­dução flo­restal num país em de­sen­vol­vi­mento. Con­tinua a emitir gases e des­trói a flo­resta au­tóc­tone, afec­tando a bi­o­di­ver­si­dade. Com o efeito per­verso de re­servar grandes áreas na­tu­rais de países em de­sen­vol­vi­mento para as grandes mul­ti­na­ci­o­nais, que ficam com ca­pa­ci­dade de apro­fundar a in­ge­rência.

Neste quadro, o re­forço do Fundo Verde para os 100 mil mi­lhões de dó­lares anuais pode ser o ins­tru­mento para fa­vo­recer o fi­nan­ci­a­mento de pro­jectos dos grupos eco­nó­micos e pro­cessos de in­ge­rência em países em de­sen­vol­vi­mento, po­ten­ci­ando a do­mi­nação im­pe­ri­a­lista dos re­cursos destes países. Fa­zendo crer que os me­ca­nismos de mer­cado são aqueles que dão res­posta a estes pro­blemas am­bi­en­tais. A Ale­manha, país de­fensor do re­forço do Fundo Verde, quer ins­ti­tuir se­guros (com fundos pri­vados e pú­blicos) su­pos­ta­mente para os países mais frá­geis res­pon­derem a ca­tás­trofes, mas que tem tudo para ser mais uma forma de fi­nan­ci­a­mento in­di­recto das se­gu­ra­doras e de grupos fi­nan­ceiros e eco­nó­micos, a pre­texto de ajudar os países em de­sen­vol­vi­mento.

3. Trans­fe­rência de custos e res­pon­sa­bi­li­dades
para as po­pu­la­ções e povos do mundo

A cam­panha mon­tada a partir do tema al­te­ra­ções cli­má­ticas tem muito de «gre­enwashing» (la­vagem verde) de grandes grupos eco­nó­micos e de lí­deres mun­diais. Ch­ris­tine La­garde, no ar­tigo já ci­tado, dava a tác­tica: «Au­mentos gra­duais e pre­vi­sí­veis nos preços de energia for­ne­cerão um forte in­cen­tivo para os con­su­mi­dores re­du­zirem a sua fac­tura da energia. (...) É por isso que o FMI tem vindo a re­co­mendar uma es­tra­tégia em três-ver­tentes: atribui-lhe o preço certo, taxa-o com es­per­teza e fá-lo agora», acres­cen­tando que «cada ver­tente é es­sen­cial».

Assim fica claro outro ob­jec­tivo, o de passar o ónus dos pro­blemas am­bi­en­tais para os ci­da­dãos in­di­vi­duais, de modo a des­cu­pa­bi­lizar os ver­da­deiros res­pon­sá­veis e a criar con­di­ções para vir a le­gi­timar o apa­re­ci­mento de novos im­postos sobre os tra­ba­lha­dores e os povos, acen­tu­ando in­jus­tiças, ili­bando dos pro­blemas am­bi­en­tais o sis­tema ca­pi­ta­lista, os grupos mo­no­po­listas e a es­tra­tégia de do­mi­nação im­pe­ri­a­lista que os pro­movem, acen­tu­ando de­si­gual­dades e não re­sol­vendo os prin­ci­pais pro­blemas com que se con­fronta a hu­ma­ni­dade.

A uti­li­zação de ar­gu­mentos ditos eco­lo­gistas para au­mentar a carga fiscal sobre as ca­madas mais em­po­bre­cidas teve como exemplo re­cente e pa­ra­dig­má­tico a Re­forma da Fis­ca­li­dade Verde, do go­verno PSD/​CDS, que o PCP ca­rac­te­rizou como uma re­a­fec­tação da tri­bu­tação, com base no ar­gu­mento falso de que a ta­xação dos seus há­bitos e ac­ti­vi­dades têm efeitos am­bi­en­tais sen­sí­veis. Tal como o PCP tem vindo a dizer, só com uma pro­funda rup­tura po­lí­tica que as­sente numa pers­pec­tiva pa­trió­tica e de es­querda se cons­trói um Es­tado capaz de gerir e pro­teger a na­tu­reza e de co­locar a ri­queza na­tural do País ao ser­viço do povo e do de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal e não ao ser­viço do de­sen­vol­vi­mento dos in­te­resses pri­vados que vêem nos re­cursos na­tu­rais apenas o subs­trato para ac­ti­vi­dades lu­cra­tivas, in­de­pen­den­te­mente da sua real uti­li­dade ou ra­ci­o­na­li­dade ou mesmo do seu im­pacto ne­ga­tivo junto da con­ser­vação dos re­cursos.

Os com­bus­tí­veis fós­seis sa­tis­fazem ac­tu­al­mente mais de 80 por cento das ne­ces­si­dades ener­gé­ticas a nível mun­dial. É ne­ces­sário di­mi­nuir esta de­pen­dência, au­men­tando a efi­ci­ência ener­gé­tica, de­sen­vol­vendo al­ter­na­tivas ener­gé­ticas de do­mínio pú­blico, que não po­nham em causa a se­gu­rança ali­mentar das po­pu­la­ções – como é o caso dos agro-com­bus­tí­veis – e é fun­da­mental in­vestir em in­ves­ti­gação e de­sen­vol­vi­mento (I&D).

Esta de­pen­dência não se com­bate des­truindo o trans­porte pú­blico, como têm feito os su­ces­sivos go­vernos.

As emis­sões que con­tri­buem para o efeito es­tufa são um pro­blema grave. Por isso é que temos que de­fender a pro­dução local, re­du­zindo a am­pli­tude dos ci­clos de pro­dução e con­sumo, travar a li­be­ra­li­zação do co­mércio mun­dial, factor de in­cen­tivo no au­mento do con­sumo ener­gé­tico e de emissão de gases com efeito de es­tufa, para além do mais com graves con­sequên­cias no plano eco­nó­mico e so­cial.

A li­mi­tação da pro­dução de gases que con­tri­buem para o efeito de es­tufa tem que ter em conta uma justa dis­tri­buição dos es­forços por sec­tores e países. Deve ser feita através de nor­ma­tivo es­pe­cí­fico sem a atri­buição de li­cenças tran­sac­ci­o­ná­veis, que já provou a sua ine­fi­cácia na re­dução da pro­dução destas emis­sões e que tem o efeito per­verso de con­di­ci­onar os países menos de­sen­vol­vidos.

Temos que pro­teger os ecos­sis­temas na­tu­rais, ter­res­tres e ma­ri­nhos, e re­cu­perar os ecos­sis­temas de­gra­dados, dado o im­por­tante papel que de­sem­pe­nham no ciclo do car­bono e nos equi­lí­brios na­tu­rais. Para tal é pre­ciso romper com a ló­gica de des­truição ao sabor dos grandes in­te­resses pri­vados.

A luta por um mundo mais res­pei­tador do am­bi­ente está in­se­pa­ra­vel­mente li­gada à luta para re­duzir as in­jus­tiças so­ciais e à luta por uma so­ci­e­dade que se eleve acima das leis da eco­nomia de mer­cado. Os pro­blemas da na­tu­reza não se re­solvem en­ga­nando-a para fazer lucro.

1 http://​monthly­re­view.org/​2015/​11/​01/​the-great-ca­pi­ta­list-cli­mac­teric/.

 



Mais artigos de: Temas

Michel Giacometti<br>– longa militância pela cultura<br>e pela transformação da vida

A co­lec­tânea, há muito es­go­tada e nunca re­e­di­tada, pre­tende «res­ti­tuir ao povo por­tu­guês o que lhe per­tence de uma he­rança le­gí­tima, nem sempre ava­liada jus­ta­mente como um dos mais pre­ci­osos bens do pa­tri­mónio comum» (in Can­ci­o­neiro). A obra reúne 250 can­ções, rimas e jogos in­fantis trans­critos dos re­gistos so­noros de Mi­chel Gi­a­co­metti e de Lopes-Graça, mas também de um con­junto alar­gado de et­nó­logos por­tu­gueses e es­tran­geiros.